Luandro

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VENTRE  MATERNO

Incapaz de tomar o leme de sua existência, aquele menino andava e andava pela larga avenida da grande Cidade. O movimento de seus pés, descalços, pareciam o ruir silencioso da estrutura social. O seu rosto sem sonhos, sem descendências acentuava o fio tênue que o prendia à vida.
Cumpria a sina de viver.
Seus olhos pareciam querer fechar-se, mas permaneciam abertos. Ele passou várias vezes perto de onde eu estava. No entanto, continuava a andar e a olhar. Olhar o quê? O corredor sombrio da noite, à procura de algum retalho de calçada que o aguardava. Não sei. Poderia estar sonhando com o ventre materno que um dia o teve. Ali estava quente e protegido.
Ele nada pedia. Apesar de minha pouquíssima visão, enxerguei tantas nuvens de lágrimas naqueles olhos que teimavam em não cair. Era a enormidade de receios. O futuro frio, sem proteção, sem significados. Sua figura desarmonizava o ambiente. “Era preciso que se fosse”, assim disse um segurança.
O pequeno foi, sobre a lâmina da vida, tendo por algoz a indigência. A ausência de valores, o desconforto que causam essas crianças, o desaprender de quem somos e o que somos.
Atravessou a rua, abraçado ao peito, tinha algo que parecia um casaco verde e surrado, mas carregado como traje de gala em noites de frio, como seria aquela, no inverno tardio do nosso Rio. Será que ele abraçava o casaco ou a mãe, naquele ermo repleto de pessoas, mas tão solitário? Olhou para trás. Por instante, um instante apenas, pareceu-me sorrir. Talvez recordasse alguma fumaça da sua infância onde havia calor humano. Mas, não quis dar tempo ao brilho dos sonhos. Estava do outro lado e tentou sentar-se. Não conseguiu. Expulsaram-no do local. Expulsaram-no do mundo mais...mais uma vez.
Num rasgo de coragem, já mergulhado na porta entreaberta da noite, arrastou seus pés, novamente, para a calçada onde, antes, estava. Novamente iria a atravessar a rua. Parecia que era possível sentir a dor de ter nascido naquele menino. Pés sujos, pernas finas. Procurava um retalho do mundo, talvez – repito - outro ventre frágil, mas que o acolhesse. Varou a porta de um novo estabelecimento comercial. Mais uma vez: -Vá embora. Afinal, a violência campeia. Um brisa fina passeou pelos detalhes de seu pequeno corpo. Novamente um choro breve, quase um riso, o tornou audível para o mundo
Naquele instante o tempo voou na velocidade das andanças daquela criança. Não pensou muito. Seus pés quiseram novamente o outro lado. Não sua mente, que, sem ver, devia estar sonhando. Encontrara uma estrada interior. Assim fez. Porém, o sinal estava aberto. Há tanto a dizer e não comigo. O corpo estendido. O casaco verde, ainda preso à sua pequena mão. Vozerio. Fuga do atropelador. Nenhuma notícia. Para quê? Não era de ninguém e era de todos.
Queria ser poeta para dizer o que senti, como participante desta etapa “social”. No rosto daquela criança - que não deveria ter mais do que sete anos - pareciam estar marcadas todas as estradas do destino já findadas. Tudo. O todo já por ele vivido, não se acomodava na estrutura daquele pequeno corpo.
Ao atravessar a rua, com seus passos curtos e pés descalços, conseguiu um passaporte de retorno ao que tanto esperava. À semelhança de certo filme e livro homônimo, Jesus já o esperava de braços abertos, em um local tão belo quanto etéreo. Retornou ao ventre materno.
Na grande avenida ficaram rostos aprisionados em preto e branco com o acontecimento. 
O menino  - agora - estava no lugar certo. Nunca soube por que foi gerado e por quê?



 
Luandro
Enviado por Luandro em 03/10/2015
Alterado em 05/10/2015


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