Luandro

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Vestido lilás
VESTIDO LILÁS

      Era uma menina em rascunho. Não era feia. Pelo contrário, era bonita. Não uma beleza pura. Mas era. Só muito tarde saberia. Seu nome? Para quê? A realidade desconhece nomes. Estes só ficaram retalhos do tempo.

      Um sábado à tardinha de um Rio de Janeiro que não mais voltará. Um bairro chamado Estácio (como mudou...).  A menina contava uns nove ou dez anos. Era a empregadinha gorda, triste e complexada na casa dos parentes ricos. Chegara de Portugal. Obrigavam-na a comer. Era preciso que parecesse que a tratavam bem. Sua mãe - como se dizia – fora servir como doméstica.  A garota não tinha amigos, não tinha companhia, não tinha com quem falar, não tinha sonhos, ou melhor, fazia rascunho de um sonho que nunca alcançou: desenhava, desenhava em rótulos de latas de leite Ninho (as antigas tinham um grande papel em volta). Por quê? A única pessoa que a ouvia, naquele tempo perdido, era um lustrador mulato (como o chamavam) que fazia a Escola de Belas Artes. Alguém, entretanto, naquele dia, disse que ela iria a uma festa, no Humaitá.

    Apática sempre. Apesar de viver à margem de tudo, um fiozinho de alegria começou a bailar em seu pequeno, estranho, mas coração, principalmente porque disseram que a levariam para comprar um vestido e um par de sapatos no também antigo e lindo Largo de São Francisco. E lá foram, ou melhor, quebrando a aridez metálica de cada dia, uma prima, a menina e outra pessoa que o rascunho da memória foram comprar aquilo de que precisavam para ficar mais elegantes. Era a década de sessenta. E os parentes eram ricos. Mas que digo: o mais importante era a filhinha da prima. As atenções eram para ela, uma princesinha.

      A loja era linda. Talvez fosse a antiga Colegial, que, naquele tempo, vendia roupas infantis. Logo que entrou, a garota viu e nunca mais esqueceu: um vestido lilás, com bordados brancos no peito, salpicados de florezinhas também lilás. Nada demais. Lindo para aquela garota. Suas roupas tinham sido dadas. Usava sempre a mesma coisa ou o uniforme. Logo notaram que gostara daquele vestido. Muito barato! Compraram-no. E os sapatos? Não.

      À noite, levaram-na à festa. Luxuosa. Requintada. Um quintal imenso de tantos que havia no Rio. A menina se encolhia e se escondia de tudo e de todos. Só lhe disseram:
       - Seu traste, comporte-se.

     Ela trajava o vestido que tanto queria. Os seus cabelos não foram enfeitados. Não tinha nada. Não tinha os sapatos novos combinando com o vestido.  É claro, na crueldade infantil, logo a viram. E riram... riram...riram muito. Eram meninos e meninas que tinham tudo. Ela não fazia parte daquilo e eles sabiam.

      Uma só menina aproximou-se dela e tentou conversar. As lágrimas não deixavam que respondesse, mas notou sinceridade no olhar da outra. Notou que, a seu lado, no jardim, cresciam, entre outras mais nobres, muitas flores da cor lilás. Eram bonitas. Ainda há muitas por aí. Crescem como uma menina qualquer em qualquer lugar.
      
       Hoje, ao abrir a gaveta de guardados na memória, ela ainda tem o rascunho do vestido lilás. Seguiu sua vida feita de muitos desenhos, alguns passados a limpo, intensamente vividos. A maioria não passou de um desenho inacabado como o vestido lilás. O pior: alguns não puderam ser desenhados, pois apenas espreitaram - como os sapatos – os momentos de felicidade e sumiram.
      

  

  








Luandro
Enviado por Luandro em 23/01/2009
Alterado em 21/07/2015


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