Ser Mulher
SER MULHER Era um dia como qualquer outro – que bobagem todos os dias são únicos. Descera do ônibus. Andava pela calçada, rumo à escola. Sentia o cair da noite. Chovera. Algumas flores ainda não tinham despertado do prazer, depois do calor abrasador. As gotículas que delas pendiam ampliavam-lhes o encanto. De repente, uma estranha figura me chamou a atenção. Uma mulher. Não, na verdade, a sombra do que um dia fora. Certamente, uma mendiga. Olhei-a um pouco mais de perto. Cabelos em desalinho. Rosto marcado pela textura do tempo. Os olhos, não pude vê-los, pois estava acocorada perto de um canteiro, olhando para algo. No entanto, percebi a roupa suja, em frangalhos. Os tênis, um de cada cor, surrados pelo uso contínuo. Até aqui nada de mais. Uma pedinte que passa e não a notamos. Às vezes, quantos não mudam de calçada, com receio de serem incomodados. É o dia-a-dia. Mas aquela mendiga segurava um pedaço de espelho. Todo quebrado. Servia, porém, para fazer algo que me surpreendeu. Sim, ela não sei de onde conseguira uma pinça – toda enferrujada- e naquele vidro tentava equilibrar sua imagem para – acreditem - “fazer” as sobrancelhas. Surpresa, aproximei-me mais. Ela pousara o saco com os seus achados e absorta tentava recuperar aquilo que o tempo levara e que jamais voltaria. O que importa é que naquele ser tão abandonado ainda havia amor por si mesmo. Não importam os seus defeitos. Os sulcos fortes dos problemas em seu rosto. Entre a razão e o sentimento, ela revelava o seu jeito ser mulher. Com aquele gesto inesperado ela matava a sede de seus desejos – mesmo que fosse apenas um. Ela punha contra a parede a tempestade de seus dias. Para ela, nem tudo estava perdido. Era como um apelo. Eu sou gente. Eu ainda sou uma mulher. Os ecos do que foi. Isso foi o que vi, quando, ao sentir-se se observada, virou-se com seus olhos de um mel esmaecido. E continuou naquele ritual em um raro salão de beleza.
Luandro
Enviado por Luandro em 02/03/2009
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