Contando Estrelas
Tinha pouco mais de seis anos. Pequena para a sua idade. Olhos negros, profundos e tão tristes como a vida que levava. Era uma garota de cabelos castanhos, que lhe caiam sobre os ombros, em caracóis. Um rostinho muito claro e doce. Antes vivia em um jardim, regado pela pureza dos sentimentos. Tinha família. Agora estava só. Inteiramente só. O pior não mais podia correr. Sair, como pequena borboleta, para apanhar, no avental típico - que outrora usava – flores e distribuí-las, feliz, pela casa de pedra em que morava: um lar feito de amor, cheirando ao verde que a circundava, já que era perto da floresta. Quebrara-se o encanto. O afeto esmagado pela morte do pai e pela distância da mãe, em terras outras.
Para perceber a sua dor e o que acontecia, é preciso viajar um pouco no tempo. Vivia em uma confortável e grande casa, na Tijuca, mais precisamente em frente à Escola José Pedro Varela, que ainda existe, embora muito modificada. Naquele lugar vivenciou as mais frias experiências. Um combate diário no seu interior. Seus tios, com um nível de vida financeiro muito alto para a época, comercializavam móveis e jóias. Só tinham uma filha, uma linda mulher, casada, com uma filhinha de dois anos. Portanto, eram seus parentes. Entretanto, ela era o fruto de um ato impensado de sua mãe. A criança bastarda, que ao resto da “família”, nunca era apresentada. Limitava-se a espiar, de longe, as pessoas que iam e vinham, em grandes almoços e festas. Fazia de tudo, desde as cinco da manhã, até ir para a escola. Sua atividade principal era dar comida à pequena (de dois anos). Tão mimada menina – também sua prima – de quem tinha que cuidar e, às pressas, comer, vestir-se, de qualquer jeito. Depois, sozinha, atravessar a rua e ingressar em outro universo hostil, fragilizada pelo desamor, coração apertado. Um grito na garganta que nunca saía. A angústia fazia morada naquele coraçãozinho. Dormia em um sótão, cheio de móveis velhos (os que precisavam de conserto). Ali, puseram uma cama e, ao lado uma tosca cadeira, onde ficavam suas poucas roupas, pois as que trouxera e que tanto amava, jogaram fora, "por estarem na moda.” Os insetos proliferavam no local. Goteiras intermináveis. Ela tinha medo. Pedia - e como pedia – a presença do pai, que, por certo, de alguma dimensão a olhava, sem que percebesse. Mas, nada dissipava as trevas ou a confortava. Noites e noites sem dormir. Apavorada, com medo de que baratas ou aranhas passassem por cima dela. Logo aprenderia um atalho. Alimentavam-na à força, pois, por ser uma criança prematura, em peso, nunca gostara de comer muito. Porém, para mostrar que dela cuidavam, sobre a mesa era posta uma montanha de alimentos no prato. Ela odiava isso. Ainda hoje, o faz frugalmente. Ficava parada. Olhava... Olhava... Até que vinha o cinto, com fivela e tudo e sobre ela descia. Era obrigada a engolir tudo... Engordou. Suas roupas, mal feitas, mais deformavam o corpo da pequena. Não tinha outras. Não saía. Ela queria fugir. Para onde? Queria ter uma armadura. Foi criando uma espessa couraça. Impenetrável. Revestiu-se de um escudo que a salvou. Permanecia em seu mundo, mas aprendeu momentos de paz. Reclamar não adiantava, quando, quinzenalmente, via sua mãe – que trabalhava como doméstica. Ela dizia, incrédula, com um sorriso, nunca esquecido: - Minha filha, eles te tratam bem. Eu não posso levar-te comigo. Teu irmão já está trabalhando. Tu, porém, ainda, és tão pequena... Não eram essas as palavras, pois era uma lutadora, que, sob promessas, viera para este eldorado. Contudo, analfabeta, outro trabalho não encontrara. Antes tecendo linho, colhendo as mais belas uvas, cerejas ou pêssegos. Talvez trigo ou milho. Era feliz, com os cestos repletos de frutas e mel (mel de verdade, pois criávamos abelhas)...No momento, uma pessoa, olhada de soslaio, recriminada pela beleza pura e simples. “Não fosse arranjar mais filhos.” Ela apenas ouvia... Depressa haviam esquecido a ajuda de que tanto falaram, após perda do pai da criança! O dinheiro que lhes dava, todo mês, para cuidarem da filha... Que faziam? Na escola, fora posta, sem cuidado, no primeiro ano daquele tempo. Ocorre que ainda não sabia ler. Uma professora, sem didática, azeda demais, Nilce, a chamava à frente da classe para ler e ela emudecia. Seu coração apertava-se com o riso da turma. Cada vez se encolhia em si mesma. O castigo era contínuo. O seu mundo interior esfacelava-se. Era, por isso mesmo, objeto de apelidos e risos. Ao chegar, faziam fila para dela rirem. A convivência humana, de serena que, antes, era, agora em conflito, tornou-se insuportável. E a ninguém dizia nada - sequer podia, Outra surra levaria. No meio desse terreno pedregoso, a garota arranjou um amigo. Um lustrador, negro (para a família preconceituosa também um nada), que a ensinou a desenhar, por ser estudante de Belas Artes. Não lhe davam papel. Arrancava os rótulos de latas de leite Ninho, usadas e que, à época, saíam inteiros. Lápis de cor, nem pensar. Não sabe como, até prêmios ganhou. Ninguém foi buscá-los! De que modo, aprendeu a ler fluentemente?Não tem a resposta. Sozinha descobriu o segredo. Por certo, um Jornal, cujo nome não lembra, foi essencial. Ela sempre o pegava, depois de lido por todos. O livro já não era mistério. Nenhum mais o foi. Foi então que essa “gata borralheira” do século XX, para acalmar sua aflição, descobriu um canto único - somente seu. O telhado, à noite. Ali desenhava. Ali inventava histórias para quando fosse “grande.” Ali aprendeu a ver a face de Deus, ao contar, noite após noite, hora após hora, as estrelas do céu. Cresceu e... (Esta crônica – tão simples - tem liames com “As Curvas do Destino” e “Vestido Lilás”, embora sem a sincronia temporal dos fatos.) Luandro
Enviado por Luandro em 17/02/2012
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